RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL:
uma análise sobre o conflito entre a segurança jurídica e a justiça das decisões (1)

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Carla Blanco Rendeiro Martins
Graduada em Direito pela Universidade da Amazônia e em Comunicação Social pela
 Universidade Federal do Pará. Servidora Pública Estadual. Pós-graduanda em Direito Civil e
 Processual Civil pela UCDB/CPC Marcato (lato sensu). E-mail:
carlarendeiro@oi.com.br.

José Manfroi
Graduado em Filosofia (FUCMT/MS); Mestre em Educação (UFMS); Doutor em Educação
 (UNESP/Marília/SP). Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação
 lato sensu da UCDB/CPC Marcato. E-mail:
jmanfroi@terra.com.br.

Milena Inês Sivieri Pistori 
Graduada em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco (1999); Especialista em Direito
 Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (2001) e em Direito das Relações
 Sociais pela UCDB (2006); Mestre em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (2004).
 Orientadora do Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação lato sensu da UCDB/CPC Marcato.

CRIANÇA NÃO TEM VEZ


RESUMO:
O presente trabalho foi realizado com o objetivo principal de revelar o posicionamento doutrinário a respeito da chamada relativização da coisa julgada material, com ênfase em abordagens acerca da proteção aos princípios da segurança jurídica e da justiça das decisões, mostrando o confronto dessas opiniões, para, ao final, apontar qual a tese construída a partir de argumentos mais sólidos e coerentes. A pesquisa foi desenvolvida a partir de consulta às fontes bibliográficas e da interpretação de autores renomados na área do Direito, permitindo, após a comparação entre as teorias, concluir pela fragilidade dos fundamentos dos argumentos levantados – sobretudo no que tange ao valor justiça – pela corrente que se mostra favorável à relativização da coisa julgada material. Por fim, não se concluiu que um princípio exclua necessariamente o outro, mas sim pela necessidade de ambos estarem presentes nas decisões judiciais.
 

PALAVRAS-CHAVE: 1.Coisa julgada. 2. Relativização. 3.Segurança jurídica. 4.Justiça.

_______________________________

 INTRODUÇÃO 

A denominada relativização da coisa julgada material é um tema bastante polêmico, que voltou ao centro das discussões com o advento da Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005, responsável por várias alterações no Código de Processo Civil Brasileiro, entre elas a previsão contida no § 1º do art. 475-L (5).

O citado dispositivo preceitua, em síntese, que será inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo inconstitucionais, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas como incompatíveis com a Constituição Federal.

Outros casos que geraram recentes discussões sobre a necessidade de se repensar o instituto estão relacionados à investigação de paternidade julgada improcedente em época que não havia exame de DNA, assim como a desapropriação de imóvel com avaliação supervalorizada.

A partir de então, os estudiosos do Direito voltaram a debater o tema da relativização ou, como alguns preferem, desconsideração da coisa julgada material, surgindo decisões judiciais nesse sentido, contudo, até o momento, não há posição pacificada sobre o assunto.

Dessa forma, percebe-se que é grande o interesse da classe jurídica no sentido de que seja definido um posicionamento sobre o tema, sobretudo por parte daqueles que aplicam o Direito no seu dia-a-dia.

A definição sobre a questão também é importante para a sociedade em geral, pois todos têm direito de recorrer à Justiça e, quando efetivamente o fizerem, em saber sobre a imutabilidade da decisão proferida no processo.

Na realização da pesquisa que fundamenta o trabalho, utilizou-se a compilação e a análise do texto, modalidades que mais se adaptam aos objetivos pretendidos.

A compilação foi escolhida em razão de se pretender investigar as opiniões doutrinárias e a legislação sobre o tema.

A opção pela análise de texto justifica-se em razão da discussão sobre a matéria – relativização da coisa julgada – ter surgido no campo doutrinário e através dessas opiniões é que são identificadas as idéias contrárias e favoráveis ao tema e os fundamentos de cada corrente, os conceitos e normas utilizados. 

COISA JULGADA 

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVI, determina que a lei não prejudicará a coisa julgada.

O artigo 467 do Código de Processo Civil Brasileiro define a coisa julgada material como “a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.

A primeira noção que devemos ter da coisa julgada é que trata-se de uma decisão judicial.(6)

A coisa julgada, também chamada caso julgado ou res iudicata, é a decisão judicial que tornou-se definitiva, não admitindo mais qualquer tipo de recurso.

Note-se que uma decisão judicial pode gerar coisa julgada formal ou material.

Na coisa julgada formal a decisão tornar-se absoluta apenas dentro de um determinado processo, isto é, as partes poderão rediscutir o mérito da questão, mas em outro processo, ajuizando nova ação.

De outra banda, quando afirma-se que uma decisão foi atingida pela coisa julgada material, isso significa que a decisão incidiu diretamente sobre a relação material em conflito e os seus efeitos tornaram-se obrigatórios dentro e fora daquele processo.

Diz-se que após reconhecida a coisa julgada material a decisão judicial (sua parte dispositiva, como ordena o CPC) torna-se firme, imutável e irrecorrível, assentada no ordenamento jurídico.

Embora ainda haja entendimento no sentido de conceber a coisa julgada como um efeito da sentença, a doutrina atual (apoiada em Liebman(7)) defende que o instituto está relacionado com o conteúdo da decisão.

Na compreensão de Mouta (2007, p. 83):

A coisa julgada, com a característica de alcançar a imunidade da decisão judicial, está ligada ao conteúdo e não aos efeitos da sentença, já que estes podem variar e, inclusive, ser objeto de disposição de vontade contrária aos efeitos originários do decisum. 

Barbosa Moreira ressalta que a posição contrária a esse entendimento não encontra respaldo legal em nosso ordenamento jurídico, haja vista o disposto no art. 467 do CPC.

A coisa julgada material é instrumento universalmente reconhecido, idealizado com a finalidade de garantir a imutabilidade das decisões judiciais, em nome do princípio da segurança jurídica, fundamental em um Estado Democrático de Direito.

Embora exista um mito em torno da imutabilidade garantida às decisões judiciais, quando atingidas pela coisa julgada material (alguns falam até em santificação do instituto), a lei brasileira, por exemplo, prevê a hipóteses de desconstituir a decisão definitivamente julgada, por meio da ação rescisória.

Observa Barbosa Moreira (2007, p. 243) que “os juízes não gozam da prerrogativa da infalibilidade” e, portanto, podem proferir decisões consideradas injustas, em razão de uma apreciação equivocada das provas trazidas aos autos, ou de uma má interpretação do direito ou mesmo porque as partes não conseguiram juntar aos autos provas suficientes para bem embasar a decisão.

Assim, dessa decisão considerada injusta por uma das partes (ou por ambas, sendo parcial a sentença) só há que se cogitar se ainda há meio de reformá-la. Afirma o processualista que “formada a res iudicata, corre-se sobre a questão uma cortina opaca, que apenas disposição legal – a título excepcional, repita-se – pode consentir que se afaste” (idem). 

RELATIVIZAÇÃO 

A coisa julgada material não é absoluta. O Código de Processo Civil, em seu art. 485, prevê exaustivamente as hipóteses em que ela pode ser desconstituída, através da chamada ação rescisória (8).

Desse modo, o termo relativização, como bem salienta Barbosa Moreira (2007, p. 236), é inadequado, pois não há que se relativizar um instituto que não é absoluto.

Nery Jr. (2004, p. 43) também não concorda com a terminologia empregada pela corrente de processualistas que vem defendendo essa tese, argumentando que utilizam-se do eufemismo da relativização quando na verdade pretendem desconsiderar o instituto da coisa julgada material.

Mais adequado, portanto, seria falar em desconsideração da coisa julgada material ou ampliação das hipóteses de relativização ou de flexibilização.

Deve-se observar que essas hipóteses de rescisão, previstas na lei, fundamentam-se na possibilidade de ter ocorrido algum vício grave que prejudicou a correta formação da decisão e, por conseguinte, do estabelecimento da coisa julgada.

Assim, a legislação processual civil vigente já prevê o remédio para uma possível injustiça ocorrida na sentença: a ação rescisória, nas hipóteses expressamente previstas.

Há estudiosos, entretanto, que apesar de não concordarem com a tese da relativização da coisa julgada, mostram-se favoráveis ao debate em torno do prazo para ajuizamento da ação rescisória, assim como sobre a ampliação das hipóteses de incidência. 

SEGURANÇA JURÍDICA X JUSTIÇA DAS DECISÕES 

As reformas recentes ocorridas no direito processual brasileiro foram realizadas no sentido de interpretá-lo – e aplicá-lo, logicamente – à luz de comandos constitucionais.

Nesse contexto, diversos doutrinadores do direito vêm levantando a tese da relativização da coisa julgada material, ou seja, da possibilidade de desconstituir decisão já transitada em julgado, depois de extrapolado o prazo para ajuizamento da ação rescisória, ou de ampliação das hipóteses de cabimento desta ação, em nome de valores mais importantes que a segurança jurídica.

Os seguidores de tal corrente buscam fundamento em princípios como o da supremacia da Constituição, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade e da justiça das decisões.

Pela análise das obras publicadas sobre o assunto, verifica-se, entretanto, que a maioria dos doutrinadores justifica a possibilidade de relativizar a coisa julgada na busca da efetivação da justiça.

Assim, o debate em torno do tema envolve, primordialmente, o confronto entre dois princípios: o da segurança jurídica e o da decisão justa.

Em um Estado Democrático de Direito, os conflitos, quando não solucionados de forma amigável, podem ser levados à apreciação do Poder Judiciário(9), que segundo Max Weber, possui o “monopólio da violência física legítima”(10).

A discussão que correrá em forma de processo, perante o órgão judicial, não pode ser eterna, terá que chegar a um final, gerando uma decisão definitiva e indiscutível. A coisa julgada, portanto, foi o instrumento idealizado para cumprir essa finalidade.

A segurança pretendida com a coisa julgada é direcionada primordialmente às partes do processo (11), na medida em que, ao levarem uma questão para ser discutida no Judiciário (já que a ninguém é dado o direito de fazer justiça com as próprias mãos), buscam uma decisão que, após todas as discussões possíveis, seja firme e absoluta, lhes proporcionando a certeza de que aquele conflito estará definitivamente pacificado.

O instituto da coisa julgada é também importante fator de estabilidade social, uma vez que confere solidez às decisões judiciais, “é condição essencial para que possam os jurisdicionados confiar na seriedade e na eficiência do funcionamento da máquina judicial”, nas palavras de Barbosa Moreira (2007, p. 246)

Verifica-se que a imutabilidade conferida às sentenças pela coisa julgada surgiu como um mecanismo, criado pelo sistema jurídico, para finalizar as demandas levadas à apreciação do Estado-Juiz, demonstrado, assim cumprir uma função ideológica de legitimação dessa ordem jurídica.(12)

Diante desse quadro, surgem os seguintes questionamentos: qual princípio deve prevalecer quando tivermos diante de uma decisão “injusta”, mas já atingida pela imutabilidade da coisa julgada material? O princípio da segurança jurídica, que é a base de sustentação da coisa julgada material, deve prevalecer diante da nova sistemática do direito processual civil? Tal princípio não deve ser afastado em nome de outros valores, como o direito a uma decisão justa?

Os aplicadores do direito, favoráveis à tese da relativização, estão valendo-se da chamada técnica da ponderação de valores (13) para solucionar o impasse, argumentando que em determinados casos concretos o valor justiça, também de índole constitucional, tem que prevalecer sobre a segurança jurídica.

É certo que há um ideal de justiça em todas as sociedades. Sabe-se, inclusive, que a justiça é um princípio basilar da ordem política.

Entretanto, a definição sobre o que seja justo ou injusto depende de condições históricas, sociais, econômicas, culturais. Por isso a dificuldade em estabelecer uma verdade científica sobre a definição de justiça.

E a corrente defensora da desconsideração da coisa julgada material não aprofunda a questão, que mereceria uma abordagem filosófica.(14)

Levantamos, então, um outro questionamento: manter a estabilidade social, primar pela segurança das relações jurídicas, também não é uma forma de se buscar justiça?

A essa questão, a corrente que repele a desconsideração da coisa julgada material para além dos casos legalmente previstos, apresenta resposta no sentido de que por vezes é melhor perpetuar injustiças do que manter o ordenamento jurídico, e toda a sociedade, em constante estado de incerteza.

Conrado (2003, p. 57) considera a segurança jurídica como um sobreprincípio, “que preordena o mister de propagar no seio da comunidade social o sentimento de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da regulação da conduta”, e que protege o valor da não-surpresa.

A segurança jurídica está também relacionada com o princípio do devido processo legal. Fala-se, ainda, na proteção da confiança, como subprincípio ou dimensão específica da segurança jurídica.(15)

Para que se consolide um Estado Democrático de Direito é primordial que se confira solidez ao Poder Judiciário, que as decisões por ele emanadas sejam respeitadas e cumpridas pelos particulares e pelos outros Poderes. A coisa julgada é um dos mecanismos usado para esse fim.

Para Guimarães (2007, p.247):

O direito justo é aquele construído pelo discurso ocorrido entre os indivíduos de uma sociedade em meio a processos participativos, sendo tal discurso estabelecido pela ordem constitucional por meio do Estado Democrático de Direito. Dentre tais processos participativos de construção do direito, em que se busca efetivar o Estado Democrático de Direito, inclui-se o processo jurisdicional, no qual o discurso deve estar necessariamente presente. 

O processo que transcorreu dentro dos trâmites legais garante às partes que o conflito de interesses foi resolvido da forma mais justa possível e a coisa julgada demonstra que após todas as oportunidades ofertadas para a discussão da matéria, a lide foi solucionada.(16)

Então, conclui-se que faz parte de um Estado Democrático de Direito que os conflitos devem ser solucionados pelo próprio Estado (através do Poder Judiciário), por meio de um processo que garanta a ampla participação das partes (devido processo legal, ampla defesa, contraditório, etc.) e que ao final seja produzida uma decisão firme, definitiva, inquestionável.

Faz parte também do processo democrático que as partes aceitem a decisão final proclamada pelo órgão jurisdicional, que reconheçam e cumpram os direitos e deveres ali estabelecidos.

A coisa julgada encerra o litígio levado ao Judiciário, que lá foi devidamente discutido pelas partes e analisado pelo juiz, servindo, assim, ao propósito de garantir a segurança jurídica e, por conseguinte, a estabilidade social.

Quando assim não ocorrer, ou seja, quando algum vício grave ocorrer durante o processo, gerando uma sentença afastada da realidade fático-jurídica ou de preceitos constitucionais (e, portanto, injusta), o legislador preocupou-se em prever hipóteses de rescisão.

Na lição de Nery Jr. (2004, p. 39):

Entre o justo absoluto, utópico, e o justo possível, realizável, o sistema constitucional brasileiro, a exemplo do que ocorre na maioria dos sistemas democráticos ocidentais, optou pelo segundo (justo possível), que é consubstanciado na segurança jurídica da coisa julgada material. 

Assim, nesse entendimento, a decisão será justa, uma justiça “possível” (tendo em vista as limitações do ser humano) em uma relação jurídica (17).

Há que ser considerado, ainda, que o magistrado, ao prolatar uma decisão, utiliza a legislação vigente naquele determinado momento histórico, assim como sua interpretação sobre os fatos será guiada pelo costumes e princípios em vigor naquela época, sendo difícil compreender os argumentos daqueles que falam em coisa julgada inconstitucional quando esta inconstitucionalidade ocorreu após a concretização da coisa julgada material. 

O POSICIONAMENTO DOUTRINÁRIO 

A análise do conteúdo doutrinário sobre o tema, evidencia diferentes posições, favoráveis e contrárias, à relativização da coisa julgada material.

Verifica-se que as discussões travadas entre os estudiosos da matéria resumem-se à tentativa de estabelecer se o instituto, criado pelo Estado com a função de garantir segurança jurídica e social, é legítimo quando torna imodificável uma decisão considerada injusta (pois em desacordo com a realidade fática ou com a ordem constitucional).

Tereza Arruda Alvim Wambier (2003) afirma que a razão de ser da proteção constitucional da coisa julgada é a segurança jurídica, mas entende que em determinadas situações esse princípio deveria ser relativizado, em nome de outros, mais relevantes para aquele momento, como a efetividade e a justiça da decisão.

A autora fala em desmistificação da coisa julgada material e defende ser possível a desconsideração de uma decisão transitada em julgado quando fundamentada em lei ou ato normativo que posteriormente venham a ser declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

Para Cândido Rangel Dinamarco (2001) também é possível se falar em desconsideração da coisa julgada material, com o objetivo de proteção de outros princípios tais quais o da legalidade, da moralidade e da justiça.

Nelson Nery Junior (2004) não aceita a teoria da relativização da coisa julgada material, por entender ser incompatível com um Estado Democrático de Direito e explica que tal tese serve como uma luva para ser aplicada por regimes totalitários, como ocorreu na Alemanha, durante a ditadura de Adolf Hitler.(18)

Alerta que são falhas as alegações apresentadas pela teoria favorável à relativização, quais sejam: a) a sentença deve ser justa, pois se injusta não produz coisa julgada; b) a sentença deve ser proferida segundo o resultado da prova, desse modo, caso os avanços científicos e tecnológicos possibilitem a produção de nova prova, há que se desconsiderar a coisa julgada para que nova decisão de mérito seja prolatada; c) a coisa julgada é matéria objeto de lei ordinária (CPC) e, portanto, pode sofrer alterações baseadas em comandos constitucionais e de outras leis ordinárias.

Assevera o doutrinador que os referidos casos são “exceções que não justificam a criação de regra para quebrar-se o estado democrático de direito, fundamento constitucional da própria república brasileira”, complementando que causa mais impacto político a insegurança geral advinda da relativização da coisa julgada, do que a obrigação de conviver com decisões injustas ou inconstitucionais (idem)

José Carlos Barbosa Moreira (2007) assevera ser incompatível com o ordenamento jurídico pátrio o “aumento da dose de relativização” da coisa julgada material, pois observa que essa relativização já é consagrada na legislação processual ao prever a ação rescisória.

O ilustre processualista concorda, porém, com a possibilidade de rescisão da sentença proferida em ação de investigação de paternidade na época em que não era usual o exame de DNA (entendendo este como documento novo, hipótese prevista no inc. VII do art. 485 do CPC), assim como daquela fundada em lei já declarada inconstitucional à época da prolação (rescindida com base no inc. V).

Zeno Veloso (2005) adverte sobre “a cautela e discrição que devem presidir essa tentativa de revisão de um conceito secularmente estratificado”.

Diante de todos esses posicionamentos fica evidente que a dificuldade em chegar a uma solução para o tema encontra-se no fato de os conceitos de segurança jurídica e justiça envolverem um alto grau de carga valorativa, e também estarem relacionados com questões de política judiciária. 

CONCLUSÃO 

Pelo exposto, chega-se a conclusão que é inadequada a expressão relativização da coisa julgada, uma vez que há previsão legal de hipóteses de rescisão do instituto. Na realidade, o que os estudiosos vêm debatendo é a possibilidade de se ampliar as hipóteses de rescisão já previstas em lei.

Conclui-se, ainda, que a discussão sobre o tema não pode restringir-se às questões jurídicas, mas deve também envolver um debate filosófico.

Assim, diante da interpretação das teses favoráveis e desfavoráveis à relativização, ou melhor, desconsideração da coisa julgada material para além dos casos já previstos em lei, verifica-se que são mais consistentes os argumentos apresentados – ao menos até a presente data – pela corrente que não admite essa possibilidade.

Tal entendimento respalda-se no fato de ter sido constatado que o principal argumento da doutrina pró-relativização é a preponderância do valor justiça sobre a segurança jurídica, sem, contudo, ser oferecida uma explicação plausível sobre qual o significado do termo justiça.

Identificou-se, ainda, que o conceito de justiça, embora consista em um valor fundamental, almejado em qualquer tempo e lugar, é relativo e impossível de ser definido cientificamente.

Portanto, não há como acatar o argumento de que a decisão proferida, em processo resguardado de todas as garantias legais, deve ser rescindida porque, simplesmente, “injusta”.

Como observa Marinoni (2004, p.31), os teóricos que defendem a relativização contrapõem a coisa julgada material ao valor justiça, mas não embasam a tese, ao menos, em uma das modernas contribuições da filosofia do direito sobre o tema e conclui que “é equivocado, em qualquer lugar, destruir alicerces quando não se pode propor uma base melhor ou mais sólida”.

De outra banda, não há como deixar de observar que o direito é criação humana e, como tal, está sujeito às transformações históricas. Desse modo, vem ganhando força a idéia – bastante sensata, por sinal – de uma interpretação das normas jurídicas mais adequadas à realidade e aos valores de uma determinada sociedade.

Nesse diapasão, até concorda-se com a preocupação de alguns estudiosos em buscar rediscutir a autoridade da coisa julgada material no que diz respeito à ampliação do prazo de interposição da ação rescisória e de novas hipóteses de cabimento (ou novas interpretações sobre as já previstas)

Não é compreensível, no entanto, a forma como os defensores da tese da desconsideração vêm abordando o assunto, com base em argumentos frágeis, ou tentando estigmatizar o instituto, como se este não fosse necessário (ainda que um mal necessário) para uma ordem jurídica e social segura e, por que não, justa!

Não há como negar que no atual estágio de desenvolvimento da sociedade, é imprescindível a interferência do Estado, através da Jurisdição, para administrar (ou tentar) racionalmente os conflitos de interesses.

Deve-se compreender que a coisa julgada é instrumento de índole constitucional, previsto no título que trata dos direitos e garantias fundamentais, assumindo um papel fundamental na manutenção do Estado Democrático de Direito, sobre o qual está assentada a república federativa brasileira.

Entende-se que a decisão justa que se procura alcançar ao fim de uma demanda judicial é aquela que tenha sido produzida após um processo com ampla participação das partes, conduzido dentro dos trâmites legais e amparado em preceitos constitucionais.

Quando assim não ocorrer, e a decisão já tiver sido alcançada pela coisa julgada material, os interessados devem buscar a rescisão, apoiados em argumentos lógicos, em uma injustiça claramente identificada quando aquelas garantias processuais ou constitucionais foram desconsideradas.

Ao prever um instituto que objetivasse por fim aos litígios definitivamente, garantindo segurança e paz social, o sistema jurídico também idealizou uma forma de fazer justiça (como já dito, uma justiça possível).

Por outro, a previsão das hipóteses de rescisão da coisa julgada material comprovam que houve uma preocupação do legislador, em um primeiro momento, com a justiça da decisão, mas também com o restabelecimento da tranqüilidade das partes litigantes, e, por conseguinte, com segurança jurídica e social.

Desse modo, entende-se que qualquer corrente que pretenda questionar a autoridade da coisa julgada material, devia levar em consideração que o ideal é que os valores da segurança e da justiça sejam conciliados em uma decisão judicial e em todos os institutos a ela relacionados.

Nesse cenário, a coisa julgada material não poder ser interpretada como um obstáculo à realização da justiça, mas como um mecanismo estabelecido pelo sistema para conferir segurança às relações jurídicas e sociais, na falta de um outro modo de viver em sociedade (utópico, ideal) que permitisse aos homens resolver seus conflitos de forma pacífica e razoável, sem a intervenção estatal. 

NOTAS 

(1) Trabalho de conclusão do curso de pós-graduação lato sensu à distância em Direito Civil e Processual Civil pelo convênio UCDB/CPC Marcato. Belém, 2008.

(2)Carla Blanco Rendeiro Martins -  Graduada em Direito pela Universidade da Amazônia e em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pará. Servidora Pública Estadual. Pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil pela UCDB/CPC Marcato (lato sensu). E-mail: carlarendeiro@oi.com.br.

(3) José Manfroi - Graduado em Filosofia (FUCMT/MS); Mestre em Educação (UFMS); Doutor em Educação (UNESP/Marília/SP). Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação lato sensu da UCDB/CPC Marcato. E-mail: jmanfroi@terra.com.br.

(4) Milena Inês Sivieri Pistori  - Graduada em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco (1999); Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (2001) e em Direito das Relações Sociais pela UCDB (2006); Mestre em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (2004). Orientadora do Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação lato sensu da UCDB/CPC Marcato.

(5) § 1º Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

(6) Paulo Otero (1993, p.42) ensina que o caso julgado comporta dois elementos: a) Primeiro, o caso julgado é uma decisão judicial; b) Segundo, o caso julgado é uma decisão que se consolidou na ordem jurídica.

(7) Sérgio Porto (2006, p.50) enfatiza que Liebman, “ao perquirir sobre as razões do instituto da coisa julgada, não vislumbrou a autoridade deste como mais um efeito da sentença, mas, sim, como uma qualidade que aos efeitos se somava, para torná-los imutáveis”.

(8) Dispõe o referido dispositivo que a sentença de mérito, após ocorrido o trânsito em julgado, poderá ser rescindida nos seguintes casos:

            I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;

            II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;

            III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;

            IV - ofender a coisa julgada;

            V - violar literal disposição de lei;

            VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;

            VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;

            VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;

            IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa.

(9) Art. 5º, XXXV, CF/88 - A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

(10) Júlio César Tadeu Barbosa (1985, p. 54), discorrendo sobre a Justiça, esclarece que “as leis são feitas pelo Estado, tendo ele o seu monopólio, o que lhes dá um caráter público. Esta idéia historicamente é recente e surge com o Estado Moderno, o Estado-Nação. O sociólogo Max Weber (1864-1920) denominou a isto de ‘monopólio da violência física legítima’. Neste sentido, retirou o Estado aos senhores feudais o direito de reprimir, aboliu o duelo e todas as formas de dominação física do homem sobre o homem, sobre os escravos, os servos, as mulheres e as crianças”

(11) O art. 472 do CPC determina que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada ...”

(12) José Rogério Cruz e Tucci (2006, p.26), citando Willis Santiago Guerra Filho, afirma que “A coisa julgada aparece como artifício ou mecanismo para implementar o convencimento e a certeza sobre a existência ou não de um direito ou qualquer outra situação jurídica, exercendo assim o papel ideológico de legitimação desse mesmo ordenamento e de garantia da sua manutenção, pois evita o confronto dos indivíduos entre si e com o próprio ordenamento, ao tornar incontrovertido, em princípio, o resultado da função cognitiva do processo, que leva à atuação do direito em um caso concreto. Trata-se, portanto, de um conceito operativo, indissociável daquele outro a que se reporta, o de sentença.”.

(13) Luís Roberto Barroso (2002, p. 68), explica que “a ponderação de valores é técnica pela qual o intérprete procura lidar com valores constitucionais que se encontrem em linha de colisão. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir-se um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição”.

(14) Júlio César Tadeu Barbosa (1985, p. 18) assevera que “a discussão sobre justiça e seus fundamentos constitui-se em um dos capítulos fundamentais do pensamento humano e seus diversos níveis, quer no campo da Teoria e Filosofia Política, da Filosofia do Direito, da Moral etc.” e que não há consenso, dentro dessas áreas, quanto a definição do termo justiça.

(15) Pedro Eduardo Pinheiro Antunes de Siqueira (2006, p.43), citando J.J. Canotilho.

(16) Pollyana Guimarães (2007, p. 262 e 259) observa que “nessa perspectiva, com o ideal de se garantir essa segurança e estabilidade quanto às expectativas sociais de comportamento necessárias ao homem, tem-se o princípio da segurança jurídica, elemento constitutivo do Estado de Direito, que consiste, pois, na segurança que o direito deve produzir para seus autores e respectivos destinatários de que poderão eles calcular as conseqüências do comportamento próprio e alheio”. A autora apresenta, ainda, a solução dada por Jürgen Habermas para o conflito entre a segurança e a pretensão de tomar decisões corretas, que consiste, em suma, em proporcionar às partes, ao longo do processo judicial, todas as garantias de uma discussão dialética, participativa, que se estabeleça o diálogo entre as partes, advogados e juízes, para que desse modo a decisão final seja aceita, reconhecida e não mais questionada pelos partícipes, pois originada de um processo racional.

(17) Observa Barbosa Moreira (2007, p. 246) que na atualidade não se pode entender “o direito de ação como direito a uma sentença favorável; nem, por conseguinte, se há de conceber o dever de prestar jurisdição como o dever de dar ganho de causa a quem a requeira”.

(18) Nelson Nery Jr. (2004, p. 47) afirma que “desconsiderar a coisa julgada é eufemismo para esconder-se a instalação da ditadura, de esquerda ou de direita, que faria desaparecer a democracia que deve ser respeitada, buscada e praticada pelo processo”. 

REFERÊNCIAS 

ARAÚJO, José Henrique Mouta. Reflexões sobre as reformas do CPC. Salvador: JusPODIVM, 2007. 

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual. Nona Série. São Paulo: Saraiva, 2007. 

BARBOSA, Júlio César Tadeu. O que é justiça? São Paulo: Brasiliense, 1985. 

BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 

CHERMONT, Michelle. Relativização da coisa julgada: análise crítica. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: [s.n.], n. 44, p. 53-73, nov. 2006. 

CONRADO, Paulo César. Introdução à teoria geral do processo civil. São Paulo: Max Limonad, 2003. 

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17.12.2008 

Fonte: Remetido por e-mail pelos autores

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