Riscos do testamento particular

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Zeno Veloso
Jurista

                         Recebi correspondência de uma leitora explicando que deseja fazer um testamento deixando todos os seus bens para uma amiga, por quem nutre particular afeição, e isso, com certeza, vai deixar revoltados e inconformados seus irmãos e cunhadas, que não conseguem esconder a inveja e a cobiça que sentem com relação a seus bens. Uma pessoa que consultou chegou a dizer-lhe que não podia dispor de todos os seus bens para uma estranha, pois tinha de respeitar a parte que, obrigatoriamente, caberia aos irmãos. Adiantou que não desejava fazer um testamento público, pois temia que o cartorário fornecesse uma certidão do ato, e que algum de seus irmãos a agredisse e, no limite, até tirasse a sua vida (!).

Finalmente, pergunta: posso outorgar meu testamento por escrito particular? Que formalidades têm de ser cumpridas? Que cuidados devo tomar com a guarda do documento? Quais as vantagens e desvantagens desse testamento particular? Por que quase ninguém utiliza esta forma de testamento?

São muitas questões e o espaço tão curto! Para começar, devo dizer - o que tenho afirmado tantas vezes - que somente são herdeiros necessários, com direito à legítima (CC, arts. 1.845 e 1.846), os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Irmãos, embora herdeiros legítimos, não são necessários ou reservatários. Podem, portanto, ser afastados pelo testamento do autor da herança. Mesmo tendo três irmãos (e cunhadas), a leitora pode fazer testamento e deixar todos os seus bens para quem quiser.

Com relação ao testamento público, os tabeliães mais preparados e responsáveis já tinham o cuidado - e o escrúpulo - de não fornecer uma certidão do ato, a não ser ao próprio testador, por ordem deste, ou com a prova de que morreu. Agora, há determinação neste sentido. Muitos Códigos de Normas - inclusive o do Estado do Pará - já proíbem os tabeliães de fornecer, sem observar alguns cuidados e restrições, a certidão do testamento público. É um avanço. O testamento particular - também chamado hológrafo - é uma forma ordinária prevista em lei e tem a mesma estatura, dignidade e importância do testamento público.

As formalidades ou requisitos do mesmo estão descritos no art. 1.876, §§ 1º e 2º do Código Civil, que transcrevo: § 1o Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever. § 2o Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão.

O testador deve guardar o testamento com todo o cuidado e segurança, evitando que alguém, de má-fé, se aproprie do mesmo e o destrua. Pode deixá-lo num cofre, em local secreto, em mãos de pessoa de confiança, na posse do próprio herdeiro nomeado, por exemplo. Com a morte do testador, o testamento é apresentado e publicado em juízo, com citação dos herdeiros legítimos. As testemunhas são chamadas para dar seu depoimento perante o juiz. Se elas forem contestes, acordes, reconhecerem que houve, realmente, a disposição, ou, ao menos, de que o testamento foi lido perante elas, e se reconhecerem as próprias assinaturas, assim como a do testador, o testamento será confirmado (CC, art. 1.878, caput). Tudo fica bem resolvido e serão obedecidas e cumpridas as determinações mortuárias do testador.

O problema, e de extrema gravidade, está no parágrafo único deste art. 1.878: “Se faltarem testemunhas, por morte ou ausência, e se pelo menos uma delas o reconhecer, o testamento poderá ser confirmado, se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade”. Isso quer dizer - e diz - o seguinte: se faltarem as três testemunhas, por morte ou ausência - e até por outro motivo isso pode ocorrer -, o testamento perde todo o seu efeito.

Tudo funciona como se o morto não tivesse deixado um ato de última vontade e sua herança vai para os herdeiros legítimos (muitas vezes, é exatamente isso que o falecido não queria, de jeito algum). Porém, se sobrar e aparecer ao menos uma testemunha, e esta, em juízo, reconhecer o testamento, este poderá ser confirmado (note-se, é uma faculdade), se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade.

Esse procedimento judicial, de confirmação testemunhal, após a morte do testador, é o grande fator de insegurança e de desconfiança com relação ao testamento particular. Ele, simplesmente, pode ser ineficaz, deixar de ser seguido e cumprido, se ocorrer o fato previsto no parágrafo único do art. 1.878. Nenhuma outra forma ordinária de testamento está submetida a esse procedimento “post mortem”, que pode fulminar o ato testamentário, tornando nenhum e sem efeito o que foi querido e feito, em vida, pelo autor da herança. Neste aspecto, a legislação brasileira precisa ser mudada, com urgência, para abolir essa esdrúxula confirmação em juízo do testamento particular.

07.02.2017

Fonte: Jornal O Liberal - Edição de 28.01.2017

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