oS DOIS LADRÕES |
Fernando
Lima
Professor
de Direito Constitucional
No
entanto, apesar de tudo isso, apesar de todos os ensinamentos doutrinários,
não existe sociedade mais desigual do que a nossa, e não existem
normas jurídicas mais ridiculamente tendenciosas dos que as nossas. É
claro que não se cumpre a Constituição. Temos uma justiça para os
pobres e outra, muito diferente, para os ricos, ou para os poderosos. Uma dessas
desigualdades, que afrontam a nossa Constituição, é a conhecida 'prisão
especial', que foi criada pelo Decreto-lei n° 3.689, de 1.941, ou seja,
durante a ditadura de Vargas. A prisão especial, que constitui um
privilégio de determinadas pessoas, enumeradas por esse decreto-lei,
significa que essas pessoas, acusadas da prática de algum crime, quando
sujeitas à prisão antes da condenação definitiva, terão o 'direito'
de 'serem recolhidas a quartéis ou a prisão especial'. Evidentemente,
essas pessoas ainda não foram condenadas, mas os pobres, que não têm
esse privilégio, estão na mesma situação, e apesar disso são
jogados em qualquer cela superlotada, de qualquer delegacia, ou de
qualquer presídio. Dentre
esses privilegiados que têm direito à prisão especial, quando
acontece de serem presos, ressalta, como um dos mais absurdos, o caso
dos 'portadores de diploma superior'. Assim, pelo simples fato de que
estudou em uma faculdade e tem um diploma de nível superior, qualquer
que seja o diploma, essa pessoa não será jogada em um presídio
qualquer, junto com os pobres - enquanto não for definitivamente
condenada, é claro. Existe
alguma razão para esse tratamento desigual? Claro que não, porque o
diplomado deveria ter ainda mais discernimento, para não cometer um
crime, do que o pobre, que não teve as mesmas oportunidades para
estudar. São aproximadamente três milhões, esses privilegiados, que têm
um diploma. Apenas três milhões, porque o Brasil, em matéria de
acesso à educação superior, está muito distante dos países
civilizados, que têm 20 ou 30% de sua população com nível superior. Portanto,
esses três milhões de brasileiros, portadores de um diploma, têm
direito à prisão especial. Para os outros 180 milhões restam as celas
comuns, superlotadas, para contraírem alguma doença, como a
tuberculose. Os
advogados, então, dispõem de condições especialíssimas para a sua
prisão, criadas pela Lei da Advocacia, o Estatuto da OAB, ou seja, a
Lei n° 8.906/1994. Para os advogados, não basta a prisão especial ou
o quartel. O advogado, acusado da prática de qualquer crime, somente
pode ser preso em 'sala de estado-maior' e, mesmo assim, desde que a OAB
verifique se as instalações disponíveis são satisfatórias, porque,
em caso contrário, o advogado acusado terá direito à prisão
domiciliar. Na minha
opinião, são inteiramente injustificáveis, em um regime republicano,
as regalias da prisão especial. Às custas do erário público,
pagamos, ainda, pelas prisões 'cinco estrelas', com direito a quitutes
especiais, televisão, geladeira e ar-condicionado. Outros
criminosos, enquadrados na categoria dos colarinhos-brancos, cumprem
pena - quando cumprem, o que é muito raro -, em suas próprias mansões,
adquiridas, às vezes, com o produto de seus crimes. E nós pagamos,
evidentemente, os salários dos funcionários públicos, que ficam
encarregados de fiscalizar o correto cumprimento da pena por esses
privilegiados! Enquanto
isso, os pobres não têm direito nem à mais elementar dignidade
humana, garantida pela Constituição, porque são jogados em celas
superlotadas, sem qualquer segurança - freqüentemente eles matam uns
aos outros -, de onde sairão, se saírem, muito piores do que entraram
e muito mais perigosos para a sociedade. Apenas
como uma tênue esperança já existe no Congresso um projeto para
acabar com alguns desses privilégios, o PL-678/2003, do deputado
Valdemar Costa Neto, do PL/SP, ao qual foram anexadas diversas outras
proposições. Talvez tenhamos, um dia, um pouco mais de respeito pelo
princípio constitucional da igualdade. Um crime é sempre um crime, um
ato prejudicial à sociedade, não importa quem o pratique. Um ladrão
é sempre um ladrão, não importa se ele é rico ou pobre. Não é
possível que o ladrão pobre seja espancado e jogado em uma cela
qualquer, freqüentemente sem direito de defesa, porque os pobres não
podem pagar advogado e o Estado não cumpre a sua obrigação, referente
às Defensorias Públicas, enquanto o ladrão rico, muito bem
assessorado por competentes advogados, se recolhe a um hospital e alega
transtornos mentais para justificar o seu crime. O ladrão pobre, se não for logo morto, aparece na página policial, ou no noticiário da TV, escondendo a cara deformada com um pano qualquer, enquanto o ladrão rico, com a cara mais cínica e deslavada, aparece na TV, diretamente do hospital, bem maquiado, em rede nacional, no horário nobre, tentando justificar o seu crime, dizendo que havia tomado alguns comprimidos e que, por essa razão, não sabia o que estava fazendo quando furtou algumas míseras gravatas de grife, ele que nem precisava porque já possuía mais de mil gravatas desse tipo! Dá vontade de jogar a TV pela janela, de tanto nojo!
06.04.2007 |
Fonte: Jornal "Amazônia Hoje"" - edição de 02.04.2007 - Belém - Pará |
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