Marido e mulher fazem testamento

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Zeno Veloso 
Jurista

Ano passado, em dezembro, comemorou-se o centenário de nascimento do professor Orlando Gomes, civilista emérito, um dos maiores juristas que o Brasil já teve. Márcio Gomes, filho dele e meu querido amigo, convidou-me para os eventos que ocorreram em Salvador. O convite foi reiterado pelo professor Edvaldo Brito, que é filho socioafetivo de Orlando.

Ficam registradas minhas homenagens ao saudoso jurisconsulto, cuja obra inteira é magnífica, inspiro-me muito nos seus livros, especialmente “Sucessões”, que me ajudou a dar o parecer que noticio neste artigo.

No interior da Bahia vivia um velho emigrante libanês, seu Nagib, que se casou com uma bela cabocla brasileira, dona Esmeraldina, nascida no Recôncavo Baiano, às margens do rio Paraguassu, e o casal teve três filhos: duas mulheres - as mais velhas - e um homem - o mais novo.

Começando como vendedor ambulante - de porta em porta -, depois com uma loja de confecções e, por último, com exportação, o velho Nagib demorou, mas acabou rico, muito rico. Gostava das filhas, que eram amorosas, estudiosas, honestas, nem bonitas, nem feias, mas amava sem limites, com toda a força de seu coração, ao Nagibinho, o filho predileto, namorador, mal completou o 2º grau, jogador de pôquer, que tinha ódio do trabalho.

Por sua vontade, considerando que havia doado uma boa casa a cada uma das filhas - “para que mais?”, perguntava-, o pai daria toda a sua fortuna ao filho superamado, em que só enxergava méritos e nele não havia nenhum defeito.

A paixão é cega, mesmo a paixão paterna. Para tristeza de Nagib, este foi informado que só podia dispor livremente da metade de seus bens e não estava autorizado a deixar todo o seu patrimônio para um dos filhos, apenas.

Como aquela família ainda estava submetida ao modelo tradicional, patriarcal - velho, ultrapassado -, da chefia por parte do marido, Nagib influenciou a esposa e ambos decidiram que iriam deixar toda sua metade disponível para o filho caçula.

E assim foi feito: celebraram uma escritura pública de testamento e, no dito e único ato, o casal manifestou a sua vontade, determinando que, com o falecimento de cada um deles, a metade de todos os bens caberia ao filho varão, Nagibinho, e a outra metade, a chamada legítima, seria dividida, em partes iguais, entre os três filhos. Nagibinho, então, ficaria com toda a metade disponível e ainda teria direito a um terço da outra metade.

A chamado do professor Cristiano Chaves de Farias, um respeitável civilista baiano, fui dar uma palestra em Salvador, ao fim da qual, reservadamente, um rapaz, calouro do Curso de Direito, em Ilhéus, disse-me ser o filho de uma senhora chamada Zênia (coincidência, um nome parecido com o meu), que é filha dos falados Nagib e Esmeraldina, ambos falecidos - ele primeiro, a mulher logo depois - e o estudante me perguntou se aquele testamento de seus avós era válido, tinha mesmo de ser cumprido? Pedi a ele que me remetesse uma explanação de tudo e cópia da escritura, o que fez.

Respondi, então, ao jovem e futuro colega que seus avós não poderiam ter feito o testamento no mesmo e único ato, embora isso seja permitido na Alemanha - quando se trata de testamento do marido e da mulher -, mas é absolutamente vedado no Brasil, conforme o artigo 1.863 do Código Civil, que proíbe o testamento conjuntivo, que é a manifestação de última vontade feita no mesmo ato, por dois testadores.

 Seu Nagib tinha de ter feito o seu próprio testamento e, em outro ato, d. Esmeraldina devia ter celebrado o testamento dela. O testamento conjuntivo é também proibido em Portugal, França, Itália, Argentina, Uruguai. Como me disse, ainda esta semana, a jovem professora de Direito Civil Eliana de Fátima de Melo e Melo: “Para cada testador, o seu próprio testamento”.

E como ficará a sucessão de Nagib e Esmeraldina? O testamento público que fizeram, no mesmo e único ato, não vale nada e coisa alguma. É nulo de pleno direito. Não tem nenhuma eficácia. A sucessão vai ser regida pela lei, pela sucessão legítima, pelas normas do Código Civil: os bens do casal falecido são de propriedade, em partes iguais, dos três filhos.

30.04.2010 

Fonte: Publicado no jornal "O Liberal" - 20.02.2009

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