Legado  de  coisa  alheia

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ZENO VELOSO
Jurista 

Fabiano Silva era viúvo, tinha três filhos, mas queria deixar alguns bens para outros parentes e amigos, quando morresse. Disseram-lhe que, por ter filhos, herdeiros chamados necessários, toda a herança dele iria obrigatoriamente para esses filhos. Era uma opinião equivocada e, felizmente, Fabiano consultou uma pessoa mais bem informada, que deu a orientação correta: herdeiros necessários são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge sobrevivente, e a esses herdeiros pertence, de pleno direito, não a totalidade do patrimônio, mas a metade dos bens da herança, constituindo a legítima (Código Civil, artigos 1.845 e 1.846).

Portanto, mesmo que a pessoa tenha os ditos herdeiros necessários, pode fazer testamento, mas de forma limitada, pois só poderá dispor da metade da herança (porção ou metade disponível - Código Civil, art. 1.789). Mas, se não fizer testamento, aí sim, a herança caberá totalmente aos herdeiros necessários, chamados em Portugal herdeiros legitimários.

Depois da orientação correta que recebeu, Fabiano decidiu fazer o seu testamento, que outorgou por instrumento público, num cartório de notas, no dia 15 de março de 2008.

Nesse testamento, respeitada a legítima dos filhos, fez alguns legados retirados da parte disponível de seu patrimônio. Deixou bens para dois sobrinhos, para um amigo, para uma instituição de caridade religiosa e para uma afilhada. Legado é uma disposição testamentária que tem por objeto uma coisa certa, determinada (por exemplo: a casa situada na rua da Liberdade nº 35;  o anel de formatura em Direito; o automóvel marca VolksWagen, ano 2007, placa JL 3243).

Não se deve confundir herança com legado. O herdeiro é titular da totalidade do patrimônio ou parte dele, abstrata ou ideal. O legatário é sucessor a título singular, e vai receber objetos, coisas individuadas, limitadas.

No direito romano, dizia-se: legado é doação deixada no testamento. O Código Civil português, didaticamente, diz que os sucessores são herdeiros ou legatários, explicando, no art. 2.030, inciso 2: “Diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do patrimônio do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados”.

Para Graziela, sua afilhada, Fabiano destinou um apartamento de quarto e sala, situado no bairro do Guamá, em Belém. O testador faleceu no começo deste ano, no mês de fevereiro, e estabeleceu-se uma questão entre os filhos dele e a afilhada, pois os descendentes do falecido entendem que a legatária não tem direito a apartamento nenhum, considerando que no dia em que Fabiano fez seu testamento, ele não tinha nenhum  imóvel situado no bairro do Guamá.

Realmente, a coisa específica, objeto do legado - no caso, o apartamento - não existia no patrimônio do testador ao tempo em que fez o testamento. Entretanto, depois, Fabiano comprou um apartamento no bairro do Guamá. Portanto, o apartamento que não havia antes, existia, sim, no patrimônio do testador na época de sua morte, ou seja, ao tempo da abertura da sucessão. O testamento de Fabiano já existia e era válido desde 15 de março de 2008, mas só na data da morte do seu autor é que o testamento vai ter efeito. (plano da eficácia).

O grande e saudoso civilista Clóvis Beviláqua dá a lição clássica, que resolve a questão apresentada antes: “se a coisa legada, não pertencendo ao testador, quando testou, se houver, depois, tornado sua, terá efeito a disposição, porque é no momento da abertura da sucessão que o testamento adquire a sua eficácia de título translativo da propriedade”. E é esta a solução que adota o art. 1.912 do vigente Código Civil. Assim sendo, a afilhada, Graziela, tem direito ao legado que fez o testador, do apartamento que não pertencia a ele, quando testou, mas depois foi comprado e tornou-se seu, e assim estava quando Fabiano faleceu.

18.02.2012 

Fonte: Publicado no jornal "O Liberal" -  01.10.2011 

LEI No 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002

 Institui o Código Civil

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.

Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.

Art. 1.912. É ineficaz o legado de coisa certa que não pertença ao testador no momento da abertura da sucessão.

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