Herança   da   Santa

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ZENO  VELOSO
Jurista
 

                           

  Aconteceu há muitos anos, até contei nesta coluna, e nessa época o fato sempre me volta à mente. Parece que foi ontem, e estou vendo novamente, diante de mim, a velhinha simpática, de roupa simples e muito limpa, de postura digna, com os cabelos brancos presos num coque, que falava mansamente e pedia que a orientasse com relação ao testamento que pretendia fazer. Explicou que não tinha marido, nem filhos, e desejava deixar o seu único imóvel, uma pequenina casa - mas bem cuidada e arrumadinha, ressaltou - para sua mãezinha. Ela devia ter cerca de 80 anos e diante de meu espanto por ainda ter viva a genitora, explicou, mansa e pausadamente: 'Minha mãezinha, doutor, é Nossa Senhora de Nazaré. É para ela que quero deixar a casa, quando morrer.'

Expliquei, então, que as pessoas capazes para receber por testamento estavam designadas nos artigos 1.717 e 1.718, do Código Civil de 1916, que vigorava, na ocasião. A matéria, agora, vem regulada nos artigos 1.798 e 1.799 do Código Civil em vigor, e foi este o tema, coincidentemente, que abordei mês passado, durante o II Congresso Paulista de Direito de Família e Sucessões, evento que foi realizado no Teatro Renaissance, organizado pelos professores Euclides de Oliveira e Antonio Carlos Mathias Coltro.

São legitimadas a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. O nascituro tem capacidade para suceder. E na sucessão testamentária, além desses, podem ainda ser chamados a suceder: I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; II - as pessoas jurídicas; III - as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação.

Como se vê, nenhuma hipótese estava abrangida no desejo daquela simpática e boa velhinha, que queria deixar tudo o que possuía para a mãe de Jesus Cristo, e padroeira dos paraenses, Virgem de Nazaré.

Em meu livro, Testamentos (2ª ed., 1993, nº 843, página 417), alertei que somente as pessoas - físicas e jurídicas - têm capacidade testamentária passiva. Estão excluídos os animais e coisas inanimadas. Não se pode fazer testamento beneficiando um animal, a alma, um santo, etc. A Imprensa noticiou caso de senhora riquíssima que deixou no testamento toda a sua imensa fortuna para o cãozinho de estimação. À luz de nossa legislação civil, tal disposição é nula e ineficaz, pois o beneficiário não é pessoa (nem mesmo é filho, ainda não concebido, de pessoa indicada pelo testador), e, portanto, não tem capacidade testamentária passiva, ou a 'testamenti factio' passiva dos romanos, ou legitimação para suceder, usando expressão mais moderna.

Mas, a não ser para o impossível, o direito tem jeito para quase tudo. Como escapar do impasse? Como resolver o problema? Como dar uma saída legal para que alguém faça valer o seu último desejo, que é o de deixar alguma coisa de valor material para a entidade espiritual pela qual nutre fervor? A solução é fazer o testamento e deixar o bem para uma pessoa - física ou jurídica - com o encargo de esta destinar valores e haveres para o fortalecimento da fé e desenvolvimento da devoção daquela Santa. Trata-se de um legado indireto. No caso antigo, que orientei, sugeri à velhinha que a casa fosse deixada para a Arquidiocese de Belém do Pará ou para as Obras Sociais da Paróquia, com a obrigação de aplicar recursos em prol da Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. Mas não faça alarde disto, não dê publicidade do seu gesto, não trombeteie, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Como está no Evangelho de Mateus (6,2), 'Ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita'.             

18.10.2008 

Fonte: Publicado no "O Liberal" edição de 11.10.2008

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