Doação   inoficiosa

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Zeno Veloso
Jurista

 Seu” Habib é um comerciante estabelecido no bairro da Pedreira.

Ficou viúvo de Zoraia, há muitos anos, e tem três filhos: dois homens e uma mulher. Os varões trabalharam sempre com ele, aproveitando para gastar o dinheiro do pai em farras que ficaram famosas na cidade. Casaram, deram netinhos adoráveis ao patriarca e vivem, literalmente, à sombra e às custas do genitor.

A filha, Cassandra, é dentista, sobrevive de seu trabalho. Mora em apartamento que ela própria comprou, no Guamá, com o produto de suas economias; o marido é funcionário público e o casal tem um filho. A moça sempre foi caprichosa, estudiosa, competente, exatamente ao contrário dos irmãos, mas, por um machismo ultrapassado e até estúpido, sempre foi propositalmente afastada dos negócios paternos, embora todos dissessem que ela tinha mais tino para as finanças do que os outros irmãos. Mas, sabe como é, os rapazes eram “machos”, e isso é que interessava na distorcida escala de valores do velho Habib, e assim já era no tempo do pai dele, o “Habibão”.

Por acaso, Cassandra soube que o pai havia feito doação dos cinco apartamentos que tinha, que representavam todo o seu patrimônio, aos dois filhos homens. Depois de décadas de abandono, desatenção e tratamento discriminatório, a moça resolveu: “Agora, chega! Vou contratar advogado e tornar sem efeito essas doações”. Esta é a questão que pretendo abordar, hoje. Pode a filha preterida atacar essas doações, desfazê-las? Pode ingressar com a ação ainda em vida do pai, ou só pode discutir a matéria quando o genitor morrer e abrir-se a sucessão? Qual o prazo que a filha tem para ingressar em juízo com a ação?

Sobre este assunto, José Fernando Simão, professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP, a famosa Escola do Largo de São Francisco, tem um precioso estudo, publicado em “Questões Controvertidas”, volume 4, editora Método. Simão será um dos palestrantes do congresso que será realizado nos dias 27, 28 e 29 de agosto, em São Paulo, patrocinado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), daquele Estado, que é presidido pelo eminente Euclides de Oliveira, um dos maiores juristas do País.

O art. 549 do Código Civil em vigor, repetindo o que dizia o art. 1.176 do Código Civil anterior, afirma que é nula a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.

Quem tem herdeiros necessários - descendentes, ascendentes, cônjuge -, só pode dispor livremente, em testamento, da metade de seus bens, pois a outra metade é a legítima, que caberá, de pleno direito, a tais herdeiros.

Não se pode doar o que não se pode testar. A doação chamada inoficiosa é a que excede a metade disponível do doador e a lei declara que a mesma é nula na parte que exceder, que ultrapassar a metade. Trata-se de nulidade parcial.

Muito se discutiu se o prejudicado tinha de esperar a morte do doador e a abertura da sucessão para reclamar do ato e pedir a nulidade parcial do mesmo, ou se estava autorizado a ingressar em juízo, desde logo, após tomar conhecimento da doação inoficiosa. Esta última corrente acabou vitoriosa. Se o herdeiro desprezado tivesse que aguardar, às vezes, longos anos, para que faleça o doador, a ação poderia até ser inútil.

Quanto ao prazo dentro do qual o lesado deve ingressar em juízo com a respectiva ação, os autores divergem. José Simão entende que essa doação - apesar da expressão legal - não é nula de pleno direito, mas anulável, e o interessado tem de entrar com a ação em dois anos contados da celebração da doação, aplicando-se o art. 179 do Código Civil.

Nossa Cassandra já teria perdido o prazo; estaria impedida de fazer qualquer coisa. Pablo Stolze Gagliano, juiz e mestre baiano, meu afilhado, no livro “O Contrato de Doação”, editora Saraiva, p. 50, defende que se trata de ação de nulidade, e o negócio jurídico nulo não convalesce com o decurso do prazo, sendo a ação imprescritível, embora seus efeitos patrimoniais submetem-se ao prazo prescricional de dez anos, invocando-se os arts. 169 e 205 do Código Civil.

No caso concreto, as doações feitas por Habib a seus dois filhos homens, super-amados, em detrimento e prejuízo da filha, ocorreram entre 2002 e 2004. A moça está no seu direito, tem de brigar por ele, e a lei permite que ela recorra à Justiça, requerendo a nulidade parcial da doação feita por seu desamoroso pai.

27.11.2009 

Fonte: Publicado no jornal "O Liberal" - 01.08.2009

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