Companheira
e concubina |
Haroldo
Guilherme Silva
Advogado
Houve
um tempo em que o concubinato representava toda e qualquer relação não-matrimonializada.
Na importava fossem os parceiros dessa relação solteiros, inexistindo,
portanto, impedimentos entre ambos para o matrimônio, ou um deles
casado cujo matrimônio ainda subsistisse válido.
A relação concubinária era, assim, desprotegida, à luz das normas
constitucionais, assim como pelo Código Civil de 1916. Num caso e
noutro, o Estado protegia, através das leis, o casamento; e as pouquíssimas
vezes em que esse velho e já revogado Código se referia ao concubinato
era apenas para exprobrá-lo, condená-lo.
A sociedade então via, hipocritamente, com olhos de censura e repúdio
as pessoas que compartilhavam tal relação. A palavra mais usual e
comum, aplicável à mulher que convivia nessa circunstância, era
“amante”; e, em face do extremado preconceito, a expressão não
raro recebia conteúdo semântico chulo, de baixo calão, numa sinonímia
que espanta.
A questão tornava-se tormentosa quando, no término dessa relação
concubinária, a mulher se via em inteira desproteção, pois não
existia norma legal que a amparasse naquele trágico instante. Ao contrário,
o concubino, na tradição da prerrogativa que desfrutava como macho, saía
dessa dissolução com totais vantagens, num verdadeiro enriquecimento
sem causa, para não dizer ilícito.
A mulher não tinha direito a alimento, nem à partilha dos bens,
tampouco à sucessão em falecendo o varão no curso do concubinato,
muito menos a usufruto de alguma parte dos bens deixados “mortis
causa” do concubino, sequer tinha ela direito real de habitação do
imóvel de residência da extinta parceria concubinária.
Felizmente, os ventos da modernidade sopraram, mudando o direito, que
evolui para atender às exigências da sociedade, seguindo-lhe os
passos.
Um momento importante dessa evolução foi a Súmula 380, do Supremo
Tribunal Federal, proclamando que, “comprovada a existência de
sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução
judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço
comum”. Inseria-se a relação concubinária no direito das obrigações,
cujas regras passaram a discipliná-la. Se não houvesse,
comprovadamente, o concurso da concubina para a formação do patrimônio
adquirido na constância daquela convivência, entendeu a jurisprudência
que a mulher faria jus a uma indenização pelos “serviços domésticos”
prestados ao varão, pelo tempo que com ele conviveu e a ele serviu,
“na cozinha e na alcova”.
Sucessivamente, depois disso, algumas leis avulsas foram,
gradativamente, editadas, concedendo certos direitos aos concubinários;
todavia, com o objetivo inocultável de contemplar a concubina, já, porém,
sob a ótica de “companheira”, conotação semântica nova que
estabeleceu diferenciação inafastável para a aplicação do direito.
As leis previdenciárias e fiscais anteciparam-se, conferindo direitos
à companheira como dependente econômica do varão e observado certo
tempo mínimo de convivência (cinco anos). Depois, a Lei 6.015/73
outorgou direito à mulher de adotar o patronímico do companheiro. A
Lei 8.069/90 autorizou a adoção por concubinos. A Lei 8.245/91
estatuiu que a companheira se sub-rogaria nos direitos do locatário. E
a Lei 8.009/90, por fim, transformou o imóvel residencial da entidade
familiar como bem de família, protegendo-o contra a penhorabilidade por
dívidas de toda sorte, observadas as exceções previstas no próprio
texto.
Todavia, foi a Constituição de 1988 que deu o gigantesco passo para
consagrar o respeito à relação não-matrimonializada entre um homem e
uma mulher, que passou a denominar de “união estável”. No artigo
226, parágrafo 3º, o constituinte fixou que, “para efeito da proteção
do Estado, é reconhecida a união estável ente o homem e a mulher como
entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em
casamento”.
Pela interpretação do texto constitucional definitivou-se a diferença
entre companheirismo e concubinato. Daí em diante, restou claro que união
concubinária não constitui união estável. Ou, ao revés, a união
estável não comporta relação concubinária.
Duas leis infraconstitucionais regulamentaram essa norma da Carta Magna.
A Lei 8.971/94 definiu, ainda que com tíbias restrições, o que é união
estável; concedeu direito recíproco a alimentos entre os companheiros;
e instituiu direito sucessório nessa união. A Lei 9.278/96 ampliou
esses direitos, ensejando um novo conceito de união estável, cujo
artigo 1º revogou tacitamente o artigo 1º da lei precedente; definiu
os direitos e deveres mútuos entre os conviventes (vocábulo que
introduziu, mas não vingou); instituiu o regime de meação entre os
companheiros, à semelhança do regime da comunhão parcial do
casamento, salvo disposição em contrário por contrato escrito; criou,
para os companheiros, o direito real de habitação.
Finalmente, o novo código Civil veio regular a matéria nos artigos
1.723 a 1.727, com avanços e retrocessos, como pude expor em palestra,
na acolhedora cidade de Macapá, durante recente o II Seminário de
Direito de Família, realizado pelo IBDFAM do Estado do Amapá. O Código
em vigor retoma a expressão “companheiro”, na mesma concepção semântica
que se infere do texto constitucional de 1988.
Assim, companheiros são o homem e a mulher que instituem, em união estável,
uma convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o
objetivo de constituição de família (CC/02, artigo 1.723).
Concubinato é a relação não eventual entre o homem e a mulher,
impedidos de casar (CC/02, artigo 1727).
Um passeio pela linguagem.
Veja-se uma rara sinonímia do termo “concubina”, colhida do preciso
(edição esgotada e não reeditada) “Dicionário de Sinônimos e Locuções
da Língua Portuguesa” (Costa, Agenor. Edição Biblioteca Luso-Brasíleira,
1º vol, 2ª ed., 1958), presente de aniversário recebido dos amigos
Reynaldo, Cláudia e filhos, obra que pertenceu à biblioteca do
eminente professor José da Silveira Neto: “Amante, amásia, amiga, arranjo, barregã, camarada, caseira, china, clori, cóia, comborça, companheira, dama, fêmea, franjosca, iça, manceba, manesa, meretriz, moça. Mulher inlegítima. Murixaba, pécora, pépia, puxavante, rapariga, sexta-feira, súcuba, tulipa (planta). - favorita: chaveira. - de homem casado: pelice”.
|
Fonte: Jornal "O Liberal" - Pará - Edição de 21.09.2003 |
www.soleis.adv.br Divulgue este site