Comoriência

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ZENO VELOSO
Jurista 

  Não há, entre eles, transferência de direitos,
 não ocorre transmissão de herança,
 um não sucederá ao outro.

Nesta semana, um bom amigo, de origem portuguesa, disse que ele e sua mulher querem fazer testamento (cada um o seu próprio testamento, é claro)  prever o caso de virem a morrer na mesma ocasião. Considerando que há casais que realizam juntos muitas viagens, pelos diversos meios de transporte - terrestre, aéreo, marítimo, fluvial etc. -, ao fazerem seus testamentos ou disposições de última vontade, devem prever a hipótese de virem a falecer no mesmo evento - um acidente, a queda de avião, o naufrágio de um navio, por exemplo.

Estou tratando do fenômeno da comoriência, já previsto há mais de dois milênios pelos romanos. Nosso antigo Código Civil regulava a matéria no artigo 11 e o atual Código trata do tema no artigo 8º, que prevê: “Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos”.

No “Código Civil Comentado”, da Editora Saraiva, cuja 7ª edição acaba de sair e que foi coordenado até a 5ª edição pelo saudoso Ricardo Fiúza e, atualmente, é coordenado pela professora Regina Beatriz Tavares da Silva, o aludido artigo 8º recebeu comentários da eminente civilista e minha mestra e amiga paulista Maria Helena Diniz, que disse: “Comoriência ou morte simultânea: A comoriência é a morte de duas ou mais pessoas na mesma ocasião e em razão do mesmo acontecimento. Embora o problema da comoriência, em regra, alcance casos de morte conjunta, ocorrida no mesmo acontecimento, ela colocasse, com igual relevância, no que concerne a efeitos dependentes de sobrevivência, na hipótese de pessoas falecidas em locais e acontecimentos distintos, mas em datas e horas simultâneas ou muito próximas”.

Essa presunção de que os comorientes tiveram morte simultânea, ou seja, de que faleceram no mesmo instante, sem que um tenha morrido antes do que o outro, é uma presunção, como se diz em latim, “juris tantum”, vale dizer: prevalece até que se prove o contrário, não sendo, portanto, uma presunção “juris et de jure”, que é a presunção absoluta, “de direito e por direito”, que não admite prova em contrário. Assim sendo, mesmo que os indivíduos tenham falecido na mesma ocasião - no mesmo acidente de trânsito, por exemplo -, se se conseguir provar que um deles morreu antes do que o outro, a presunção legal referida no artigo 8º do Código Civil não vai incidir. Essa prova de que um dos comorientes faleceu antes do outro poderá ser obtida pelo exame cadavérico, e o papel do médico legista tem grande significado e importância.

Um dos mais importantes efeitos da presunção da morte simultânea dos comorientes ocorre no direito das sucessões.

Se os comorientes são herdeiros um do outro - pai e filho, companheiros, cônjuges, por exemplo - e se vigorou a presunção legal de que faleceram no mesmo momento, nenhum deles sucederá ao outro. Se se tratava do pai e de seu filho, nem o filho herda do pai, nem o pai herda do filho. Não há, entre eles, transferência de direitos, não ocorre, entre os dois, transmissão de herança, um não sucederá ao outro. Cada um deles transmitirá sua herança aos seus respectivos herdeiros.

Vejam como isso pode ser importante, num caso concreto, a respeito do qual dei parecer. João Galdino era um empresário nordestino ligado à atividade canavieira, e tinha um filho, Eduardo, que trabalhava com ele na empresa. Certo dia, fazendo uma viagem de automóvel, na perigosa rodovia que liga Recife a João Pessoa - que, todavia, está sendo duplicada -, o veículo colidiu de frente com uma carreta, ficando totalmente destruído.

João e seu filho faleceram no pavoroso acidente. Pela presunção do artigo 8º, os dois morreram ao mesmo tempo, não havendo transmissão de direitos hereditários entre eles. Mas Fátima, a esposa de Eduardo, recém-casada, ficou muito triste com tal solução, pois o jovem marido tinha alguma coisa, mas não era rico, e o sogro, ao contrário, dono de uma das maiores fortunas da região. Constituiu um advogado e argumentou que João, bem mais idoso do que o filho, morreu antes deste quando ocorreu o impacto. Eduardo, mais novo, forte, campeão de pesca submarina, havia resistido mais do que o velho pai. Assim sendo, tendo falecido primeiro o pai e, minutos depois, o filho, teria havido o traspasse da herança do pai para o filho. Com a morte do filho, a herança deste - já acrescida da fortuna que recebera do pai - passaria a seus próprios herdeiros. Como Eduardo não tinha mais ascendentes, e nem tinha descendentes, a herdeira universal dele, adivinhem, era a sua viúva...Entretanto, não foi possível provar que o pai, no caso, havia morrido antes do que o filho. A viuvinha sabida e ambiciosa, apesar do nome de santa, não conseguiu abocanhar a fortuna do sogro.

PS: recebi um telefonema de Gustavo Tepedino, notável jurista brasileiro, dando-me a boa notícia de que a paraense Rose Vencelau Meireles obteve, num disputadíssimo concurso, o primeiro lugar e é a mais nova professora adjunta de Direito Civil da UERJ. 

08.01.2011 

Fonte: Jornal "O Liberal" - edição 13.03.2010

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