Ainda
as algemas |
Marcelo
Bertasso
Juiz de Direito em Altônia/PR
Hoje
o STF aprovou a Súmula Vinculante que “regulamenta” o uso de algemas.
Eis seu teor: ““Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência
e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria
ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a
excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar
civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do
ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do
Estado”. Eu
já havia criticado aqui a falta de sintonia dos ministros do Supremo com
a realidade. Mas o teor da súmula demonstra falta de sintonia da corte
com a letra da Constituição, diversos os vícios que inquinam o ato. Para
começar, não existiam “reiteradas decisões sobre matéria
constitucional” envolvendo limitação do uso de algemas, de modo que se
violou o caput do art. 103-A da Constituição. O que existia era o
julgamento de um habeas corpus em que se discutia a nulidade da sessão de
julgamento do Júri em razão de ter permanecido o réu algemado. Assim, não
havia correlação entre a questão decidida e o teor da súmula, que
extrapolou os limites da questão levada ao conhecimento do plenário. Afora
isso, o § 1º do art. 103-A estabelece que a súmula terá por objeto o
“objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas
determinadas“. Qual norma determinada foi interpretada pelo STF ao
editar a Súmula nº 11? Nenhuma. Consta, oficialmente, que seria a regra
do art. 474, § 3º, do CPP, com a redação dada pela Lei 11.698/2008,
que passou a vigorar anteontem e nem existia quando dos fatos que
ensejaram o HC. Continua
o § 1º do art. 103-A da CF dizendo que somente caberá súmula
vinculante quando existir “controvérsia atual entre órgãos judiciários
ou entre esses e a administração pública”. Existia essa controvérsia
no caso? Evidentemente que não. E mais, dessa controvérsia deve advir
“grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos
sobre questão idêntica”. O tema não gera insegurança jurídica e
muito menos relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
E aí temos outro problema: “questão idêntica” seria acerca da
validade do julgamento pelo Júri com réu algemado, e não o tema
abstrato de “limites ao uso de algemas”. O
STF poderia ter editado súmula dizendo que é nulo o julgamento realizado
pelo tribunal do júri com réu algemado injustificadamente. Mas não
poderia ter regulado toda a matéria de forma genérica como fez. Em
síntese, nenhum dos pressupostos constitucionais relativos à edição de
súmula vinculante estava presente, daí sua patente inconstitucionalidade
formal. Em
suma, o STF inovou originariamente no ordenamento jurídico, ou seja,
legislou mesmo. E isso fica mais evidente quando se observa a exigência
feita pelos ministros de que a ordem de uso das algemas venha por escrito.
No ordenamento jurídico há dois dispositivos que mencionam o uso de
algemas: o art. 474, § 3º, do CPP e o art. 234, § 1º, do CPPM. Nenhum
desses dois dispositivos exige ordem escrita da autoridade para determinar
o uso de algemas. O STF, portanto, ao “interpretar” a norma,
estabeleceu condições que nem a própria lei fez. Extrapolou os limites
dela. É situação semelhante ao que ocorre quando o Presidente da República
regulamenta a lei através de decreto: se o decreto extrapola os limites
da lei, fazendo exigências que ela não faz, ele é inconstitucional. A
pior parte fica para o final. A súmula estabelece penas para o caso de
sua não observância: responsabilidade civil, disciplinar e penal do
agente ou autoridade e nulidade da prisão ou do ato processual. Comecemos
pela nulidade, que é mais branda. As nulidades são previstas
textualmente no CPP, mas admite-se sua decretação em outras hipóteses não
incluídas no rol legal. Mas o Código é expresso em dizer e a doutrina não
cansa de repetir: não há nulidade sem prejuízo. Imagine-se que o réu
seja interrogado com algemas, sem ordem por escrito. Qual o prejuízo do
ato? Nenhum. Hipótese diversa é a do julgamento pelo Júri, porque os
jurados, leigos que são, podem se influenciar pela visão do réu
algemado. Já o Juiz togado, que é técnico, não se influenciará por
isso, até porque, muito provavelmente, se o réu está preso foi por
ordem do próprio juiz. Se ninguém questiona a imparcialidade do Juiz que
decreta a prisão preventiva do acusado, muito menos a questionará quando
o juiz interrogá-lo de algemas. Portanto,
o uso de algemas em atos processuais, por si só, não importará em
nulidade, e a súmula vinculante do STF não tem o condão de revogar o
CPP na parte em que determina que somente ocorrerá nulidade se dela advir
prejuízo ao direito de defesa do réu. Resta
analisar a pior parte: responsabilidades. Quanto à responsabilidade
civil, basta lembrar que as obrigações têm três fontes: lei, vontade e
ilícito. Súmula vinculante não cria obrigação, apenas interpreta a
lei. Poder-se-ia dizer que a responsabilidade do agente, aqui, decorreria
do ilícito: usar algemas em desacordo com a lei. Mas, em primeiro lugar,
os dois dispositivos legais que regulam a matéria não prevêem
responsabilização civil do agente que a inobservar. Fora isso, onde
estaria o dano aí? Qual o abalo moral ao réu que já está preso e foi
mantido com algemas durante audiência? Salvo raras exceções, me parece
não existir, não se tratando, evidentemente, de dano moral in re ipsa. Quanto
à responsabilidade disciplinar, novamente descabida a súmula, porque as
hipóteses de responsabilização disciplinar devem advir do estatuto
legal que discipline a carreira jurídica. O delegado não pode ser punido
por fato não previsto na lei que o regula, assim como o magistrado não
pode ser punido por situação não prevista na LOMAN, ainda que súmula
vinculante o faça. E
quanto à responsabilidade penal, temos o mais absurdo. Os ministros
esqueceram que em direito penal ainda existe um princípio denominado
“legalidade”. Súmula não define crimes e nem penas. Mas, podem dizer
os defensores do ato, a súmula apenas interpreta a subsunção entre a
conduta de manter as algemas e o tipo previsto na lei de abuso de
autoridade. Ocorre que essa subsunção é feita casuisticamente, de
acordo com as circunstâncias de cada situação e a prova dos autos. Súmula
não pode estabelecer, de forma genérica, o que é ou não crime. Isso
somente cabe à lei. Em
suma, o STF usurpou o papel do legislador, sumulou entendimento que
extrapolava os limites da questão que lhe foi trazida, agindo de ofício. Isso
demonstra o lado perverso do instituto da súmula vinculante. Concebida
como um instrumento de otimização da prestação jurisdicional e
uniformização de entendimentos no Judiciário, se mal utilizada (como no
caso), pode gerar efeitos catastróficos. Basta lembrar que somente a lei
pode inovar no ordenamento jurídico, mas para isso ela é proposta por
parlamentar, passa por diversas comissões temáticas, é aprovada em duas
casas legislativas, submetida à sanção, onde o Presidente da República
ouve ministros de diversas área relacionadas e só depois decide. E, após
isso, essa lei pode ser questionada concretamente perante o juiz de
primeiro grau, e, em abstrato, perante o STF. No
caso da súmula vinculante, onze ministros resolveram, numa canetada,
regular abstratamente algo que nem a lei regula, editaram um ato que não
pode ser questionado nas instâncias inferiores do judiciário, não foi
submetido a discussão no legislativo e à análise do executivo e que só
pode ser alterado a partir da iniciativa de uns poucos legitimados. Talvez o Constituinte reformador de 2004 não tenha se atentado para esse tipo de situação ao deixar de prever mecanismos de controle do instituto das súmulas vinculantes. Ou tenha acreditado que nossas instituições tivessem atingido um grau de maturidade que, agora se vê, está longe de ser alcançado. 20.08.2008 |
Fonte: e-mail da Anamages - http://mpbertasso.wordpress.com/ |
Sem
algemas - Um
julgamento em Cambuci, RJ, quase acaba em tragédia. Um réu
condenado a 19 anos, que estava sem algemas, por causa
da súmula do STF,
livrou-se dos policiais
e correu para o plenário, com ameaças.
A juíza e a promotora
se esconderam atrás
da mesa. Meu Deus...
(ancelmogois – O Liberal –
16.09.2008)
www.soleis.adv.br Divulgue este site